Artist Insights com Paulo Gaspar
O ensino do clarinete no século XXI
Passado mais de um século desde o início de um dos fenómenos musicais mais importantes do século passado e várias décadas após o surgimento de obras que exploram as chamadas “técnicas estendidas”, o jazz e a música moderna têm vindo a ser integrados no ensino tradicional de forma consistente, no entanto, as técnicas não convencionais são tantas vezes negligenciadas.
Apesar de as diversas áreas se encontrarem agora juntas na mesma escola, embora em cursos separados, conheço vários casos de músicos de jazz que procuram o professor erudito do seu instrumento para aprofundar a sua técnica, assim como músicos de orquestras sinfónicas que encontram no jazz uma forma de enriquecer a sua performance erudita. As vantagens são evidentes para ambos, pois existe muito repertório erudito com influências do jazz, num fenómeno classificado como third stream. A especialização existirá naturalmente, mas um conhecimento mais abrangente fornece ferramentas individuais para um melhor desempenho de cada atividade especifica.
Além da procura individual, caberá ao ensino no século XXI incorporar todas estas questões, de forma a preparar os novos clarinetistas para os desafios do passado e corresponderem ao progresso do futuro. De facto, apesar das “técnicas estendidas” não serem utilizadas na música mais antiga, serão uma mais valia na preparação dos músicos do futuro. Não podemos permitir que os novos clarinetistas sejam condicionados na escolha do seu repertório por não dominarem algumas dessas técnicas.
A colocação correta dos instrumentistas de sopro passa por conjugar diferentes aberturas da garganta, com várias posições da língua, recorrendo à utilização das várias vogais. No essencial podemos considerar vogais mais abertas para os graves e mais fechadas para os agudos. Como sabemos, o domínio da respiração abdominal é essencial para tocar os instrumentos de sopro, no clarinete, som, timbre, dinâmica e articulação dependem diretamente da velocidade do ar em conjugação com as várias posições da língua e um conjunto de fenómenos amplamente conhecidos por embocadura. Por exemplo, a respiração circular pode ser muito útil em passagens de enorme duração, como é o caso do Concerto nº1 de Louis Spohr, assim como é imprescindível em algumas obras modernas.
A utilização prática de conteúdos teóricos abordados em disciplinas como harmonia, treino auditivo, análise musical ou leitura à primeira vista (com e sem transposição), permitem desenvolver hábitos na prática do instrumento, tão importantes no dia a dia de um músico. Estas práticas permitem transportar para o instrumento um conhecimento que otimiza a performance, permitindo utilizar melhor o ouvido e desenvolver a memória, ferramenta imprescindível para interpretar por exemplo Harlekin für Klarinette de Karlheinz Stockhausen, já que, além da abordagem de outras áreas performativas, o clarinetista terá de decorar cerca de 60 minutos de música.
A improvisação está extremamente ligada ao jazz, no entanto, tal prática permaneceu na música erudita até ao classicismo, tendo sido abandonada durante o século XIX, embora as cadências dos concertos clássicos permitam aos solistas a improvisação durante a performance, como era uso na época. A verdade é que poucos são os solistas a manter esta prática na atualidade. Estarão as escolas a fornecer aos seus estudantes as ferramentas necessárias para tal prática?
Enquanto no jazz são estudadas dezenas de escalas e arpejos, que podemos encontrar na música escrita, em geral apenas são estudadas, no ensino tradicional, as escalas maiores e as relativas menores harmónica e melódica. Por exemplo, podemos encontrar os modos mixolídio e dórico na Première Rhapsodie pour Clarinette en Sib et Piano de Claude Debussy, os quais poderão ser estudados separadamente, tendo em conta a sua organização intervalar. Também a obra Time Pieces for Clarinet and Piano Op. 43 de Robert Muczynski foi composta com base nas escalas octatónicas MTMT e TMTM (M=½ Tom e T=Tom), pelo que o seu estudo aprofundado facilitará a performance da obra.
Da mesma forma, seria vantajoso praticar de forma isolada o estado fundamental, 1ª e 2ª inversões dos arpejos de três notas (tríades), como acontece na cadência do Concerto de Aaron Copland, onde podemos encontrar tríades maiores em sequência descendente, por tons inteiros. Assim como o estado fundamental, 1ª, 2ª e 3ª inversões dos arpejos de sétima (quatríades), já que cada uma das inversões e estado fundamental têm uma sonoridade própria. Por exemplo, no Concerto para Clarinete e Orquestra K. 622 de Wolfgang Amadeus Mozart podemos encontrar ao longo dos três andamentos tríades no estado fundamental, 1ª e 2ª inversões, assim como arpejos de sétima da dominante no estado fundamental e 3ª inversão.
O repertório moderno depende da maior ou menor utilização da garganta para produzir uma grande quantidade de efeitos como: multifónicos, vibrato, flap lip, bend e glissando, que marca o célebre início da Rhapsody in Blue de George Gershwin. Existe naturalmente uma interação da garganta com as diversas posições e diferentes ações da língua em coordenação com o fluxo do ar para realizar o staccato, tongue ram, slap e flatterzunge. Sempre com a consciência de que a língua mais atrás facilita os harmónicos superiores e mais à frente favorece os harmónicos inferiores. A utilização da garganta é ainda essencial para a produção do efeito som e voz. Este pode ter um objetivo harmónico (o clarinete produz um som e a voz o outro), mas esta interação permite também produzir o growl (uma espécie de distorção).
O efeito som e ar permite aprofundar a relação da pressão da embocadura, conjugado com a velocidade do ar que permitirá tocar em sub tone, efeito pedido ao clarinetista quando integra a orquestra de jazz. Podemos acrescentar ainda efeitos como som e chaves ou trilo tímbrico. Quanto aos quartos de tom terão de ser trabalhados com recurso a dedilhações especiais, embora já existam instrumentos preparados para o efeito.
Será evidente que os clarinetistas saibam tocar minimamente todos os instrumentos desta grande família e acrescentaria que a prática dos diferentes saxofones pode acrescentar conhecimento para o melhor domínio dos clarinetes. Além de abrir a possibilidade de dobrar clarinete e saxofone numa das muitas obras eruditas com esse requisito ou numa orquestra de jazz, onde é comum esse desafio.
Com o aumento do trabalho à distância, a utilização do microfone tornou-se ainda mais importante. Além de ser imprescindível na performance de muitas obras com eletrónica, será relevante quando qualquer instrumentista participe num concerto amplificado ou for chamado a gravar. Porque não promover o encontro entre músicos e estudantes dos cursos de tecnologias da música para aprofundar esta área?
O facto de o mesmo músico soar de forma semelhante com um instrumento diferente, permite concluir que a forma como todo o processo antes do instrumento é trabalhado, tem uma grande influência no som produzido. Acredito que o conhecimento e prática das técnicas e ideias aqui apresentadas sejam um contributo efetivo, para o desenvolvimento dos clarinetistas do futuro, mesmo não utilizando as referidas técnicas estendidas no dia a dia da sua atividade individual, consistirão num aprofundamento do domínio do clarinete, tornando mais eficaz a performance especifica do clarinetista no século XXI.
Paulo Gaspar
Formado pela Escola Superior de Música de Lisboa, prosseguiu o mestrado na Universidade Nova de Lisboa e em 2011 concluiu o doutoramento em Música e Musicologia na Universidade de Évora. Já leccionou em diversos conservatórios e é frequentemente convidado a realizar masterclasses de clarinete e introdução ao jazz. Atualmente é professor na Escola de Jazz Luiz Villas-Boas (Hot Clube de Portugal), Academia Nacional Superior de Orquestra e Escola Superior de Música de Lisboa.
Ao longo da sua carreira tem desenvolvido uma atividade muito diversa que vai da música erudita ao jazz. Tem gravado e colaborado com importantes músicos portugueses e a maioria das orquestras nacionais eruditas e de jazz. É solista da Banda da Armada desde 1989 e clarinetista dos Dixie Gang desde 1991. É um dos elementos fundadores do Lisbon Underground Music Ensemble e integra a Orquestra de Jazz do Hot Clube de Portugal.